05 fevereiro, 2007

Como a fé desempatou o jogo


Curiosamente, a Revista Veja desta semana discute o mesmo tema do Roda de Ciência. O texto completo está disponível on-line aqui. Copio apenas um trecho como indicação para quem estiver interessado. O Marcelo Leite deve estar se descabelando com o tal "gene da espiritualidade"...
De Okky de Souza

Os antepassados humanos que desenvolveram a capacidadede crer foram os únicos a sobreviver à Idade do Gelo. Isso explica por que a fé resiste mesmo quando a ciência prova que o sobrenatural nada mais é do que química e eletricidade.
(...)
A ciência já identificou um gene da espiritualidade e conseguiu mapear os circuitos neurais responsáveis pelas emoções ligadas à fé. A evolução gravou em nosso genoma a necessidade da devoção e isso ajudou a espécie a sobreviver à Idade do Gelo. Como se sabe isso? As pesquisas arqueológicas e antropológicas mostram que diversos tipos de ancestrais humanos conviviam antes da Idade do Gelo, há cerca de 30.000 anos. Quando as geleiras cederam, apenas um tipo predominava, os Cro-Magnon. Eles organizavam-se em famílias, puniam o incesto, enterravam seus mortos, enfeitavam os túmulos, pintavam as paredes das cavernas por deleite estético e espiritual...! Os religiosos enxergam nesse salto evolutivo a interferência direta de Deus nos destinos da humanidade. Os cientistas dizem que a brutal aceleração da competição por recursos escassos e a luta pela sobrevivência em condições climáticas adversas selecionaram os hominídeos de tal forma que restaram apenas aqueles que desenvolveram a capacidade de acreditar. Em quê? Acreditar que aqueles tempos duros iriam passar. Acreditar que uma força superior iria trazer de volta as temperaturas amenas.

13 comentários:

Daniel Doro Ferrante disse...

Oi Osame,

Eu realmente gostaria de começar esse comentário com um vernáculo do português [bem] coloquial, daqueles que servem também para expressar interjeições (assim como partes do corpo). Mas, vou resistir, pelo menos momentaneamente, ao instinto selvagem e me conter a comentários um tanto mais produtivos.

Eu não tinha a menor intenção de ler essa reportagem... até porque, usos sensacionalistas ("gene da espiritualidade"?!!! WTF!!!) de pseudo-ciência conseguem me incomodar ainda mais que "sensacionalismo" ou "pseudo-ciência" separadamente. Fora isso, NÃO consigo ver COMO essa reportagem possa estar ligada ao tema "Ciência e Religião" que o Roda escolheu para Fevereiro: "Uma coisa é uma coisa; outra coisa é outra coisa."

De resto, me nego a comentar sobre os "fatos" expostos nessa "reportagem"... mas, vou deixar linkados aqui as referências que mostram, aquém da dúvida, os erros fatídicos da mesma:

1. The Third Chimpanzee: The Evolution and Future of the Human Animal;
2. Guns, Germs, and Steel: The Fates of Human Societies;
3. Collapse: How Societies Choose to Fail or Succeed;
4. History of religions;
5. History of Religions;
6. The history of religious and philosophical ideas;
7. Sociology of religion;
8. Philosophy of religion;
9. Anthropology of religion.

E olha que eu só estou falando daquilo que eu vi nisso que vc citou aqui! Se eu tiver que ir lá e ler a dita reportagem... aposto como o número de referências vai subir... exponencialmente!

Então: "Muita HORA nesse CUIDADO!" Essas conclusões "rápidas" e, invariavelmente, "rasteiras"... só mostram a qualidade do material apresentado ao público: BAIXA!

E, digo mais: Se vc quiser discutir esse assunto com a seriedade que ele merece, acho que deveríamos começar por saber quais foram as FONTES consultadas pelo repórter em questão -- eu quero ver a BIBLIOGRAFIA que ele consultou pra embasar o texto dele. Sem isso, fica difícil até de se começar a conversar... eu NÃO vou ficar aqui brincando de adivinhar o que fulano quis dizer com frases mal escritas e sem referências.

Como vc vê, essa "métrica" de "qualidade" é a mesma que eu estou aplicando a mim mesmo: Comecei dizendo que o texto é RUIM, FRACO, e já dei 9 referências pra embasar minhas críticas. Sim, eu sei que poderia ter feito um "resuminho" dos pontos importantes... mas, me nego a falar sobre aquilo que já deveria ser BÁSICO... principalmente aqui no Roda. Então, vai de pincel grosso mesmo: Lê as referências e só depois é que a gente conversa.



[]'s.

Osame Kinouchi disse...

Daniel, o objetivo do meu link é justamente chamar a atenção para o fato de que este tema está bastante popular, seja na Veja, seja na Galileu (cuja manchete deste mes é: Por que os cientistas do século XXI querem destruir Deus?) ou algo assim, náo lembro direito.
Ou seja, a minha questao nao é a discussao seria (que farei depois que ler seus links e escrever o meu texto do mes) mas sim a ligacao do tema com a tarefa de divulgacao cientifica a que este blog tambem se propoe.

Nao entendi porque vc nao entendeu o post. Cuidado com reacoes emocionais antes de uma avaliacao fria e cuidadosa dos posts... Nao fica bem num cientista serio... risos.

Osame Kinouchi disse...

Ah, sim, esqueci de dizer que o tema, coincidentemente, tambem foi capa da revista Mente e Cerebro de Janeiro.
Como eu tenho tendencias a Advogado do Diabo, se voce Daniel disser qual das afirmativas achou pseudocientifica, eu vou buscar as referencias para podermos discutir. Um dos mais antigos proponentes da tese geral de que os seres humanos teriam tendencias geneticas ao pensamento magico e fe religiosa, selecionadas evolucionariamente, foi o Jacques Monod, no livro Acaso e Necessidade, ateu insuspeito de carteirinha. E Monod é um premio Nobel, logo acho que posso chama-lo de cientista, não?

João Alexandrino disse...

Osame,
acho que o excerto retirado do artigo da Veja é injusto para com a totalidade do artigo, que é um pouco mais equilibrado do que o excerto faria pensar.

Li o artigo na sua totalidade e notei que falta uma crítica ao trabalho científico de Dean Hammer, o autor do livro 'The God Gene'. Convém notar que o estudo no qual se baseia alguma da argumentação do livro não foi publicado com revisão por pares. Baseia-se em um estudo com 2000 indivíduos a quem foi apresentado um questionário complexo para definir um determinado fenótipo, e em estudos de associação estatística genótipo-fenótipo. Hammer afirma que detectou um 'gene' (VMAT2) com um peso de apenas 7% na espressão de um fenótipo que Hammer apelida de "self-transcendence", que poderia contribuir para uma tendência humana para a religiosidade. O peso desse gene seria portanto mínimo (o que é normal em estudos de genética quantitativa) mas, mais importante, existem vários problemas com a definição dos fenótipos dos seus objetos de estudo.

Apesar da pseudo-ciência 'à la Dawkins', acho que o tema do artigo da Veja é muito relevante para o debate deste mês, aqui na Roda.

Caio de Gaia disse...

Safa, Osame o excerto que você colocou, para ser simpático com a pessoa que escreveu aquilo, só pode ser chamado de lixo. Eu teria paciência para ler essa coisa se não fossem os disparates científicos pelo meio.

Não há ponta por onde se pegue. Já que quer um exemplo, Cro-Magnon é um termo com uma grande carga ideológica e ligado ao conceito de supremacia racial europeia. Pode ser usado (mas é raro hoje em dia) para referir os humanos que se estabeleceram na Europa entre 40 a 30 mil anos atrás. Os aspectos essenciais da cultura desses homens, estéticos e espirituais de certeza que já vinham de África. Esses aspectos evoluiram longe das geleiras.

Para mim é mais um exemplo de péssimo jornalismo mas tem razão, mostra alguma actualidade do tema.

Quanto ao Dawkins, não tenho grande vontade em ler coisas desse senhor. O homem é louco.

Osame Kinouchi disse...

Caio, nao entendi. Vc leu ou nao a reportagem? Vc conhece ou nao os livros e as pesquisas citadas? Eu sei que a qualidade do jornalista nao é boa... mas você conhece algum jornalista cientifico bom, que escreva em portugues?
Acho que voce esta correto com relacao ao fato de que a arte e a espiritualidade apareceram bem antes da era do gelo. Mas o que a reportagem afirma como hipotese é que a era do gelo seria responsavel pela "eliminacao" (e nao pelo aparecimento) de grupos humanos que nao tinham um espirito religioso comunitario forte.
Acabei de ler tambem um livro sobre a historia da Sumeria, que talvez fosse a primeira civilizacao humana de grande porte. É impressionante o papel da religiao nessa civilizacao: o templo é algo central, e dono de tudo, regulando os mais infimos detalhes da vida do dia a dia. Só bem mais tarde aparece o estado monarquico e tendencias a secularizacao. Interessante. É preciso cuidado com a critica ignorante da religiao (sem ela talvez nao estivessemos aqui). Como diz o ditado: baseados na religiao, eles construiram piramides e catedrais, enquanto que nós construimos shopping centers. Bach versus Britney Spears. E assim vai... E nao adianta dizer que foram obra de trabalho escravo, pois a nossa civilizacao tambem tem os seus (muitos) escravos...

João Alexandrino disse...

A segunda referência do Daniel (Germs, guns and steel) discute evidências de como a religião organizada (note-se que é diferente da espiritualidade típica de indivíduos ou de pequenos grupos, que precedeu a religião) acompanhou o crescimento e estruturação das sociedades humanas, desde o bando, tribo, 'régulados' até às grandes civilizações-estado. O título desse capítulo particular é interessante e revelador: "From egalitarianism to kleptocracy". A hipótese discutida é a de que o poder secular de reis e o divino dos sacerdotes foram no início formas de transferência de poder do indivíduo, integrado em pequenos grupos aparentados (bando, tribo), para entidades representativas do interesse coletivo (?) para resolução de disputas em grupos grandes de indivíduos largamente não-aparentados e desconhecidos ('régulados' e estados). E isto porque no início da nossa existência como espécie, não éramos socialmente muito diferentes de chimpanzés, vivendo em pequenos grupos cujos indivíduos não hesitam em matar qualquer indivíduo estranho ao grupo. Jared Diamond discute evidências (baseadas em populações da Nova Guiné) de que, no início da formação de sociedades mais abrangentes, seria comum encontrar indivíduos desconhecidos tentando encontrar laços de parentesco entre si, mesmo que afastados. Poderiam demorar horas, até decidirem se deviam matar-se ou não! Conseguem imaginar? Bárbaro, mas delicioso! Bom, resumindo, existe uma tendência apoiada por fatos históricos de que quanto maior a organização política e religiosa de uma sociedade, levando a uma maior identificação do indivíduo com o coletivo, maior o sucesso dessas sociedades ao longo da história da humanidade. Daí se poder pôr a hipótese de as tendências à religião ou outras formas de poder organizado terem resultado de um processo seletivo. Faz sentido embora, como qualquer outro fato histórico, seja difícil de provar de forma completamente científica.

Caio de Gaia disse...

Dentro de poucos anos vamos ter o genoma completo do homem de neandertal. Vai dar para ver se o tal "Gene de Deus" está lá.

Mas eu nunca li nenhumas das obras referenciadas neste artigo enão tenho grande vontade.

Ten Worst Science Books
Hamer, Dean, The God Gene. Any book by Hamer, "discoverer" of the "gay gene" and "God gene," would have sufficed. He is an embarrassment to genetics.

João Alexandrino disse...

Para quem não tenha reparado, o título "The god gene" é uma paródia ao "The selfish gene" de Dawkins. Não tenciono ler o livro mesmo assim.

Osame Kinouchi disse...

Bom, se alguem quiser comprar o livro O gene de Deus, o link é: http://www.submarino.com.br/books_productdetails.asp?Query=ProductPage&ProdTypeId=1&ProdId=1088739&ST=SF6688#synopsys

Eu acho que vou comprar, se for baratinho...

Devemos lembrar que se uma estrategia social funciona, por pura teoria de jogos podemos prever que ela sera copiada. Ou seja, universalidade nao implica em base biologica, pode ser apenas difusao memetica (cultural) eficiente e/ou reinvencao da roda.

Assim, seria um exagero chamar os genes que controlam nosso sistema de recompensa dopaminergico de "Gene do Capitalismo", e explicar assim a "universalidade" do capitalismo. Ou nao? Poderiamos explicar assim a universalidade dos jogos de azar? Não, nem mesmo isso, "Gene do Bingo" não, please...

Existe um outro lado da questao. Eu acho que uma parte consideravel da experiencia religiosa (de unidade ou "amor" transcendente) se deve a mecanismos parecidos (talvez os mesmos?) que os que produzem o apaixonamento (essa outra loucura irracional...). Deve ser algum circuitinho situado na amidala cerebral. Afinal, o mandamento de se amar a Deus de todo o seu coracao (e a experiencia mistica de ser amado por Ele) lembram muito a paixao homem-mulher (é por isso que, na Biblia, o povo de Israel, e depois a Igreja, são chamados de noiva de Deus). Entao, uma hipotese alternativa é a de que circuitos ligados ao apaixonamento (originariamente selecionado visando produzir paixao sexual e portanto baixo nivel de avaliacao racional de custo beneficio do ato de ter filhos) foram mais tarde cooptados para produzir paixão entre "irmaos de fé" (ou seja, estender o parentesco para alem do parentesco biologico) visando ajuda e defesa mutua.

Agora, o apaixonamento, assim como a experiencia religiosa (e a torcida de futebol), nao sao racionais. Mas isto implica que devemos renunciar a estas experiencias humanas? Quem nunca sentiu uma paixao, nunca vai ter nada não...

Os pais vestem (impõe?) os filhos com a camisa do clube sem consulta-los, sem que isso seja uma decisao racional dos pequenos. Será que Dawkins tambem gostaria que o futebol fosse eliminado da face da Terra? Será que este exemplo do futebol quebra o argumento de Dawkins sobre a educação religiosa? Ou não?

Anônimo disse...

"Compre o 'Gene de Deus' e ganhe uma linda caneca Dean Hamer".

Estão precisando oferecer "brindes" para que alguém queira comprar (e/ou ler) o tal "Gene de Deus"?

Kynismós! disse...

Outra vez não! Mas não resisto, futebol é até saudável enquanto prática desportiva mas nem tanto quando torna-se religião.
Acho que não é preciso dizer os porquês? É? :P

Osame Kinouchi disse...

Este é o problema. Transformamos tudo em religiao (especialmente aqueles que nao tem religiao). Transforma-se opcao politia em religiao, transforma-se militancia feminista em religiao, transforma-se atividade cientifica em religiao, e até o ateismo vira uma religiao:
http://www.igrejapositivistabrasil.org.br/

Enquanto isso, contradicao, a religiao (institucional) se torna menos religiosa, mais racional e burocratica (no sentido de Weber)...