11 fevereiro, 2007

A religião do Rapaz de Turkana

"Eu não evoluí do Rapaz de Turkana nem de nada semelhante a ele," diz o Bispo Boniface Adoyo, que comanda 35 denominações evangélicas, que ele diz possuirem 10 milhões de seguidores. "Esse tipo de opiniões idiotas estão a matar a nossa fé."

O tema do mês na roda de ciência é Ciência e Religião, e eu não resisti a incluir esta citação de um artigo da AP relativamente a movimentações que se fazem no Quénia contra uma exposição de vestígios fósseis de antepassados humanos. A posição do Bispo Adoyo ilustra bem o que está em jogo, qualquer tipo de religião com componentes naturalistas, isto é de explicação de como o mundo veio a ser e funciona, tem o potencial de entrar em colisão com as explicações científicas. No caso das correntes cristãs que interpretam literalmente a Bíblia o pomo da discórdia é o Génesis que afirma que o homem foi criado tal como é, e que estabelece um intervalo temporal para a existência do mundo de uns poucos milhares de anos. Nas religiões da antiguidade este aspecto naturalista da religião era ainda mais patente, com deuses para cada um dos fenómenos da natureza: trovões, chuva, Sol, rios, colheitas. Este tipo de preocupações acompanham os seres humanos há muito tempo. [leia mais ...]

9 comentários:

Osame Kinouchi disse...

Caio, queria te perguntar o seguinte: qual é a real dimensao dessa coalizacao de 35 denominacoes evangelicas? (dado que existem centenas delas). Pergunto isto por causa deste trecho que tirei da noticia correspondente do Estadao:
"Seguidores do criacionismo acreditam na verdade literal da Bíblia para a criação do mundo. O bispo Adoyo acredita que Deus criou o mundo há 12.000 anos, e a humanidade, 6.000 anos depois. A coalizão evangélica do bispo é o único grupo religioso a se mostrar preocupado com a mostra dos fósseis."
Aqui no Brasil, ao contrario dos EUA, acredito que o Criacionismo de Terra Recente, como eles se chamam, nao chega a 2% dos evangelicos. Entre os catolicos, nem se fala, ja que o papa Joao Paulo II escreveu uma enciclica admitindo a evolucao e o Big Bang (o ponto de conflito com a ciencia sendo outro, ou seja, se a evolucao e o Big Bang teriam algum tipo de significado ou proposito, ou nao).
E em Portugal? Eu imagino que o Criacionismo de Terra Recente seja ainda menor ai, dado o maior nivel educacional da populacao...

Osame Kinouchi disse...

Eu concordo com voce que as religioes tem aspectos naturalisticos (para aqueles que interpretam literalmente seus textos sagrados em vez de usa-los como sabedoria de vida acumulada e sistematizacao de valores na forma de narrativas literarias).
Entao talvez tenhamos algo concreto em que trabalhar o conflito Religiao - Ciencia: Colaborar para que a Religiao se desliteralize, se desnaturalize, e, ao mesmo tempo, trabalhar tambem para que a Ciencia nao se torne substituto da religiao, ao embutir valores que ela nao pode discutir ou justificar. Teorias sobre altruismo biologico, por exemplo, tendem a supor ou induzir(pelo menos na cabeça dos leigos) de que o altruismo é bom ou desejavel - o que nao é verdade, como as mafias e o espirito de corpo dos torturadores demonstra...

Maria Guimarães disse...

osame, não entendi a parte sobre altruísmo - nem como ela se relaciona com o resto do assunto...

caio, fiquei fascinada com a paleoantropologia da religião. o rapaz de turkana não pode ser antepassado do bispo adoyo não só porque era um ser inferior - mas porque era um herege ateu e nem sequer sabia disso!

tenho que confessar uma grande limitação mental nessa área. estou aqui gastando meus neurônios para entender por que o pobre rapaz - e o que quer que ele indique a respeito da evolução humana - é uma ameaça tão absoluta à fé como um todo...

Anônimo disse...

E novamente um "líder religioso" se vale do equívoco (cada vez mais difundido) de que "evolução é apenas uma teoria" e por isso não é confiável e não é "capaz" de contestar (ou apresentar uma alternativa menos fantasiosa) para o gênesis.
Espero que o apelo do bispo não surta efeito e que a exposição tenha sucesso.

Osame Kinouchi disse...

Maria,
Minha observação sobre o altruismo biologico se refere à falacia naturalista: que o que foi selecionado evolucionariamente no passado é bom para o futuro da humanidade. Acho que isso sempre tem que ser qualificado. A velha diferenca entre o que é e o que deveria ser.
Territorialismo talvez seja uma caracteristica selecionada, mas isso nao deveria ter implicacoes sobre se deveriamos jogar bombas uns nos outros ou nao. Quando discutimos modelos de altruismo (que nem precisam ter base biologica, basta a teoria de jogos do Dilema do Prisioneiro), precisamos explicitar que a ciencia envolvida nada tem a dizer sobre se o altruismo biologico é desejavel ou nao. O mesmo vale para o comportamento egoista (dos genes ou dos individuos), a monogamia puladora de cerca do homo sapiens etc.
Deixa eu deixar mais claro meu ponto: imagine que atraves de drogas, operacao cerebral ou engenharia genetica, conseguissemos obter seres humanos que fossem totalmente pacificos, sem nenhum traço de violencia, ou mesmo, ao contrario, os "demônios louros de Nietszche", nobres conquistadores super-humanos implacaveis, com desprezo profundo por qualquer tipo de compaixao. Voce concorda que a ciencia nao nos dá a menor dica sobre o que seria preferivel? Qual o criterio? A sobrevivencia a longo prazo da especie? Ok, eu sei que uma populacao pacifica seria facilmente conquistada por uma populacao guerreira. Mas isso quer dizer que eu deveria preferir, por razões biologicas ou sociais, uma populacao guerreira? Hitler estava certo, afinal? Sinto muito, se esta for a conclusao, nao posso acompanha-los nisso. Existe hoje, mais do que nunca, uma tendencia da psicologia evolucionaria e da neurociencia de estudar a origem dos valores. Nada contra, até a favor (sou fascinado por isso, recomendo o livro a Origem da Virtude de Matt Ridley). Mas estudar a origem dos valores nao é a mesma coisa que justificar valores ou decidir "cientificamente" que valores são desejavei ou que valores deveriamos ter. Isso é papel da filosofia ética secular (atualmente, para uma minoria - voce ja leu algum livro de ética filosofica?) e, para a maioria da populacao, das ideologias seculares ou religiosas, quer conscientes, quer absorvidas por osmose.

Maria Guimarães disse...

obrigada, agora entendi. concordo que conhecimento sobre biologia não tem muito a dizer sobre ética e moral. (mas nunca li nada de ética filosófica)
me lembrei foi da "reforma da natureza", de monteiro lobato, que li na longínqua infância!

Osame Kinouchi disse...

Eu quis esclarecer o que é o tal posicao de "dois magisterios" defendida por Stephen Gould. Concordo com Caio e Dawkins (e portanto nao concordo com Gould) de que as religioes contem afirmativas ou hipoteses de carater naturalista, e portanto precisariam passar pelo crivo da ciencia. Enfatizei que talvez, no futuro, as religioes abandonem totalmente esse carater naturalista (ou seja, assumam apenas o segundo magisterio: uma reflexao, baseada em narrativas tidas como literarias - e nao narrativas tidas como historicas - proverbios, parabolas e poesia, sobre valores humanos profundos).
Por outro lado, discordo de Dawkins quando ele se cala sobre qual é a verdadeira dimensao da ciencia no segundo magisterio, que a meu ver é: ela pode nos dar indicacoes de viabilidade de principios eticos, mas nao nos da nenhuma razao para assumi-los. Afinal, porque a justica seria preferivel à injustiça? Se ficar comprovado "cientificamente" que sociedades que usam a tortura sao mais estaveis e viaveis no longo prazo, isso seria argumento para aceitar a tortura e usa-la em Guantanamo?
Mas meu desconforto com Dawkins realmente é politico, como ele diz. Foi graças a radicais como Dawkins (no caso Monod, na decada de 60) que surgiram, como reacao, escritores muito mais bem dotados e persuasivos (para as massas) como Feyrabend e Rubem Alves. Eu acho a atitude do Dawkins suicida e prejudicial a ciencia, pois ele afirma que apenas os ateus podem ser bons cientistas, o que me parece ser um absurdo empirico (existem otimos cientistas nao ateus) e logico (tecnicamente falando, como ele reconhece na entrevista para a Saloon, so se pode ser logicamente agnostico, nao ateu). Mas fica aqui a pergunta, que desenvolverei no meu post: ser ateu ou agnostico é uma condição necessária para que uma pessoa seja um bom cientista?

João Alexandrino disse...

Osame, concordo com quase tudo, mas acho que falta qualquer coisa na abordagem à falácia naturalista. Você diria que não existe uma componente biológica na produção de ética? Ou que existe e deveria ser conhecida mas não necessariamente seguida? E o que exatamente significa biológico, nessa sua opinião?

Osame Kinouchi disse...

João, deixa eu esclarecer: acredito que exista um instinto moral ou ético (fruto de uma psicologia evolucionaria). Por exemplo, é possivel que certas tendencias ao altruismo sejam inatas, via seleção de parentesco etc. Nao sei determinar quao amplo ele é, mas certamente evoluiu em conjunto com o instinto social humano - o ser humano é um mamifero social, isso nao é uma escolha nossa. Agora, esta ética instintiva não tem a ver diretamente com a Etica com E maiusculo, disciplina filosofica, que parte de pressupostos - por exemplo o pressuposto do Utilitarismo de que devemos agir de tal forma a minimizar a infelicidade do máximo de pessoas)

Ou seja, o ser humano pode ter um comportamento etico (nao no sentido de "bom", mas no sentido de norma de comportamento - exemplo, a etica do guerreiro, a etica do mafioso), mas cabe à Etica examinar se tal etica biologica, evoluida Darwinianamente, é desejavel ou "boa" (o que significa ser desejavel ou bom tambem sao pensados dentro da Etica filosofica). Se nao for, a Etica poderia sugerir que certos comportamentos naturais humanos deveriam ser reprimidos (bom, a cultura é essa repressao, não?). Se um dia houver tecnologia suficiente, a etica pode sugerir a mudança da Natureza Humana (que afinal não é perfeita nem nos foi dada por Deus). Na verdade essa "tecnologia" já existe: as mulheres fazem seleção sexual e, dentre outras coisas, selecionam o comportamente etico de seus companheiros.