20 março, 2008

O Papel do Cientista nas Decisões Éticas

Por mais que se queira dissociar o tema deste mês do confronto "ciência vs. religião", não há como fugir a isto, uma vez que o próprio tema surgiu da atualidade da decisão que o Supremo Tribunal Federal vai ter que tomar (em minha opinião, já devia ter tomado...) sobre uma questão de suposta "ética", que, na verdade, é apenas sobre um dogma religioso.

Sendo assim, não me resta outro remédio senão analisar, desde a origem, a convivência entre "ciência e religião", uma vez que sou suspeito por ambos os "lados" desse confronto.

Eu afirmei, em comentário ao artigo do Osame, que as religiões tiveram como base a "ciência" (na sua acepção de "conhecimento adquirido"), só que as religiões não foram capazes de se adaptar ao progresso da ciência e se tornaram, mesmo, um entrave ao progresso da humanidade, quando deveriam ser, ao contrário, um esteio ético para este desenvolvimento.

Voltemos à pré-história e analisemos a "ciência" de então, para podermos avaliar de onde surgiu toda essa idéia de "religião" e qual papel ela deveria ter, bem como sua ligação com os conceitos de "moral" e "ética". (leia mais aqui)

25 comentários:

Mauro Rebelo disse...

Há muito tempo, quando essa discussão das células tronco estava acontecendo nos EUA, e o Bush proibiu pesquisas com as células feitas com dinheiro do governo (o que significava quase proibição total), eu li que várias outras crônicas sobre eventos em que posições políticas (morais e éticas) decidiram sobre questões científicas. Em todas elas, todas aquelas situações, desde Giordano Bruno e Galileu Galilei, as decisões políticas atrapalharam a ciência. Isso inclui o Edward Teller no episódio da Bomba H. O problema ético de como chegar ao conhecimento tem sido, historicamente, muito menor do que o problema ético das decisões políticas que se tomam com base nesse conhecimento. Mas não adianta evitar que a ciência produza conhecimento. a ignorância só gera mais autoritarismo e mais uso arbitrário do pouco conhecimento existente.
Acho que o papel do cientista nas decisões éticas é esse: mostrar que o conhecimento serve a todos. A falta dele, a uma minoria. Um abraço,

Daniel Doro Ferrante disse...

Joao, Mauro;

Mauro, antes de tudo: PARABENS! EXCELENTE comentario! Eh isso mesmo: o papel da ciencia eh o de libertar o homem de sua ignorancia! Vc colocou a questao sob o paradigma correto: sem informacoes factuais concretas e robustas, eh praticamente impossivel de se tomar qualquer atitude racional e logica. E a ignorancia do povo SEMPRE foi uma ferramenta usada para manobrar a massa.

Portanto, FREE SCIENCE, SCIENCE 2.0 neles! Vamos disseminar o maximo que pudermos! :-)


Joaozao: Seus posts sao sempre otimos! Sua analise antropologica e sociologica [das religioes] foi certeira.

Eu me lembro, ha muUuito tempo atras, de que me disseram que as pessoas costumavam representar o "vazio", o "nada", de duas maneiras: um grupo o via como "preto", enquanto que o outro grupo o via como "branco". E, na mesma epoca, me disseram que havia uma explicacao para ambos os casos. Eu sempre quis saber qual era essa explicacao… mas, nunca tive a sorte de encontrar alguem que soubesse — ou que me dissesse que tinham me sacaneado! :-) Serah que ou o Rogerio ou a Silvia saberiam dizer?! (Diquinha! ;-) De qualquer maneira, conto meu caUso: Desde pequeno (5-7 anos), quando eu ouvia falar em Deus, eu ficava pensando: De onde veio Deus?, Quem criou Deus? Ou, talvez, como Ele foi criado? E, toda vez, a imagem que me vinha na cabeca era a mesma: o "nada" da onde Deus teria vindo era *branco*, um branco ateh que bem "forte", "brilhante". E, pior ainda, pra mim, o tal nada continha uma "pilha de lixo": Deus veio dum nada branco reluzento com uma pilha de lixo! Tipo uma "fumacinha" que sai da pilha de lixo! Caraca… o inferno certamente estah em "Obras de Expansao" agora… espero, pelo menos, ganhar uma piscina no meu lote! ;-)

Pra mim, o "preto" sempre teve conteudo… nao sei direito o porque… uma coisa meio "espaco sideral": estah cheio de estrelas, planetas, galaxias, dum monte de coisas diferentes! Entao, claro, o "vazio completo", o "nada absoluto", soh poderia ser branco. :-) Tipica logica pueril (de moleque 'maneh', como eu era — e ainda devo ser ;-): se nao eh "A", soh pode ser "B"! :-)

De qualquer maneira, eu prefiro que meu imaginario divino continue sendo no melhor estilo Michelangelo: um velhinho, de barbas brancas, vestido de branco, numa nuvem alva, com um ceu azul clarinho de fundo… e, claro, de cajado! Mais "Mauricio de Souza", impossivel! :-)

Mas, voltando aa vaca fria… eu jah fiz esse comentario (que vou refazer, abaixo) aqui uma vez ha muito tempo atras. Mas, acho que ele eh extremamente significativo e importante no contexto desse nosso tema de agora: "Cohomologia Social!" :-)

O grande "truque" de "valores", "etica" ou "moral" eh o seguinte: Nossas atitudes, percepcoes, intuicao, etc, sao SEMPRE objetos **locais**, i.e., a gente age no "aqui e agora". Porem, eh preciso alguma coisa pra guiar nosso "longo prazo", i.e., pra guiar o "global" das nossas atitudes. Ou seja, um monte de boas acoes locais pode muito bem acabar gerando um resultado global nao desejado: esse eh o famoso caso "o inferno estah cheio de boas intencoes". :-)

Entao, "etica", "moral" e "valores" sao os meios que nohs, humanos, encontramos de nos guiar por esses mares de curto, medio e longo prazo. Isso serve pra minimizar o numero de "boas intencoes" nossas que vao nos levar para o inferno. ;-)

Bom, em matematica isso tambem existe, i.e., tambem existe e eh importante o fato de que precisamos, aas vezes, construir o global a partir do local. O nome formal disso eh: "Cohomologia". Essa eh uma ferramenta que, a partir de medidas locais, eh capaz de inferir o global. Falando mais formalmente: a partir duma analise do complexo diferencial eh possivel se inferir propriedades topologicas! :-)

Eu acho que a "grande busca" da humanidade deveria ser assim guiada: por Cohomologias. :-) Como eh que podemos inferir as propriedades globais das nossas acoes atraves dos nossos atos de hoje?! Meu nome para uma construcao analoga a essa, em Sociologia ou Antropologia, seria "Cohomologia Social" ou "Cohomologia Antropologica"! :-)

O poder das teorias de cohomologias (existem alguma: de Rham, Cech, Sheaf, Étale, Deligne, Floer, Grotendick, Quantica, …) eh realmente impressionante. Esse tipo de analise, em Fisica, eh extremamente moderno — de verdade, tambem o eh em Matematica: tem uns 50-60 anos de idade! Resultados globais em teorias de Yang-Mills jah levaram a muitas descobertas — em particular, motivado por esse caso, o Witten escreveu um trabalho lindo sobre "Supersymmetry and Morse Theory". Como extensao desse trabalho, levando em conta o fenomeno de Quebra Espontanea de Simetria (transicoes de fases), apareceu um objeto chamado "Higgs Bundles" que sao importantissimos para a chamada Langlands Duality! Ou seja, essa eh uma ferramenta forte, robusta, pesada… de "gente grande": se ficar brincando sem ter experiencia… se machuca, e feio! ;-)

E eu penso que muito desses formalismos pode ser aplicado aa Sociologia e aa Antropologia.

Mas, vou deixar essas grandes viagens pra quando eu descobrir porque o meu "nada absoluto" eh branco! Caraca… :-)




[]'s!

Mauro Rebelo disse...

Daniel, uma vez vi em uma aula, um gráfico que mostrava um curva crescente de entropia, que em algum momento era interrompida por uma súbita queda (na entropia). Existiria um certo 'patamar' para o aumento de entropia que causaria a sua redução, para depois aumentar. Você já ouviu falar disso? Isso é uma 'quebra de simetria' da qual você está falando?

Mauro Rebelo disse...

A Lucia Malla lembra no seu blog de mais um exemplo excelente de decisões políticas ferrando a ciência: O caso do agrônomo Lamarckista Lysenko que se tornou ministro da agricultura de Stalin por que o Lamarckismo era mais ligado a doutrina marxista que o Darwinismo. O resultado? Menos produção agrícola e muito embaraço para a comunidade científica Russa.

Shridhar Jayanthi disse...

Propaganda gratuita pro meu blog. Leia mais sobre Lysenko aqui: http://www.entropicando.com/2007/07/plantas-hbridas.html

Daniel Doro Ferrante disse...

Mauro,

Eu acho, pelo que entendi do que vc está descrevendo, que é isso mesmo: "Transição de Fase" ('Quebra de Simetria' é só um "nome chique", vulgo "jargão", para o mesmo fenômeno).

Então, quando o gelo derrete, do ponto-de-vista do gelo, a entropia está aumentado, ele está esquentando e tal. Mas, do ponto-de-vista da água, ela está fria, a entropia é pequena. É assim mesmo. :-)

Quanto ao exemplo do Lysenko, muito bem lembrado. Mas, dum fulano que matou o próprio filho (sim, Stálin, o "homem de aço" (tradução literal dessa alcunha), mandou matar o próprio filho), o que mais vc esperaria?! :-(


[]'s.

Osame Kinouchi disse...

Daniel, interessante a sua inversão: branco = negativo, vazio, preto = positivo, cheio. Acho que isso pode indicar que você não é racista (mesmo que sua imagem de Deus seja um velhinho branco).

Mauro e Shridhar, acho que uma das primeiras referfencias à relação entre neoLamarckismo e socialismo russo está aqui: http://comciencias.blogspot.com/2008/03/neolamarckismo.html.

Mas, para sermos justos, devemos notar que Marx e o Marxismo antes de Stalin eram Darwinistas, nao neoLamarckistas.

João Carlos disse...

Gente, em primeiro lugar, eu quero pedir desculpas pelo "cartapácio". Ficou muito mais longo do que eu queria e eu tive que "atamancar" o final.

Pela reação do Mauro, fica evidente que meu ponto não ficou claro e que eu vou ter que escrever mais sobre o assunto, para me explicar direito.

A pergunta que eu quero fazer (e tentar responder) é: se as religiões nasceram da "ciência", porque não conseguem se atualizar junto com a ciência?

E, é claro, tentar mostrar que uma pessoa pode ser religiosa, sem ser anti-científica (o que, em outras palavras, significa que "ceticismo em matéria de religião" e "ateísmo" não são pré-requisitos para o cientista).

O "capítulo 'Ética' " parece desnecessário, porque já está sendo adequadamente discutido nos comentários ao post do OK, mas, mesmo assim, merece algumas considerações.

A mais evidente é que se a "moral" e a "ética" vigentes contrariam a ciência, está na hora de repensar todas as três...

Mauro Rebelo disse...

João,
Meu comentário não foi com relação a todo o seu texto. As vezes eu me pego em uma parte mesmo ;-)

Mas acho a sua premissa de que a religião nasceu da 'ciência', ainda que como você descreve no seu texto, perigosa. E talvez a causa da impossibilidade da religião evoluir como a ciência.

A moral e a ética não andam contrariando apenas a ciência. Elas contrariam a própria condição humana. E quem está mostrando isso é a ciência, não a religião. Mas eu devo estar errado, afinal, não bastasse a moral e a ética, os intelligent denials da vida, agora temos sido atacados por outra 'ica': a 'Estética'. E vários cientistas têm caido na armadilha da 'teoria mais bonita'.

Daniel Doro Ferrante disse...

Osame, João, Mauro,

Osame: Olha, não sei se diz que eu não sou racista... mas, o velhinho de branco é só minha imagem renascentista. :-)

João: não se acanhe: pode escrever comprido mesmo! Eu, particularmente, gosto de ler coisas boas, se forem longas, melhor ainda — é mais tempo de diversão! :-)

Agora, quanto a sua pergunta sobre a "atualização" da Religião... torno a dizer: uma é questão de "fé", a outra não. "Fé" é uma condição humana que não pertence aos círculos filosóficos racionais. E essa é a razão que vc procura. Tentar racionalizar um dos poucos (senão único!) círculos irracionais que temos é, em muitas medidas, um erro! A gente tem fé porque "tem"; a gente ama porque "ama" — eu costumo brincar e dizer que esses (dentre outros) são 'verbos intransitivos', não precisam de complementos: vc faz porque faz e ponto. Vc não ama alguém porque (...); vc não tem fé numa religião "A" ou "B" porque (...) — nós, enquanto humanos, simplesmente simpatizamos e nos empatizamos com algumas coisas e não com outras. É simples assim. E isso *não* precisa de justificativa, creio eu.

Mauro: "estética"... é uma pena que essa não seja uma ferramenta usada de modo mais robusto... apenas, assim, en passant. :-( Daí a razão das atrocidades que vemos em nome dela...



[]'s!

João Carlos disse...

Mauro, eu acredito que quando você está se referindo a "religião", está se reportando a uma idéia de "religião com doutrina e rituais estabelecidos". Na minha definição de "religião", ela é uma atividade de "re-ligação" do ser humano com seu meio-ambiente (que inclui aspectos místicos, evidentemente, e toda a parte "magística" propiciatória).

De certa forma - horresco referens - a "ciência" tem seu "quê" de religião, na medida em que busca - através da compreensão dos fenômenos naturais - "o lugar da humanidade na 'ordem das coisas' e como proceder para ocupar plenamente este lugar".

O lugar da "fé" é, sempre mais e mais, ocupado pela certeza do conhecimento. Mas o cientista também tem uma "fé": a "fé" de que tudo tem uma explicação natural e lógica, por mais que essa certeza tenha natureza estatística.

Eu tenho para mim que o grande faux pas das "religiões" foi querer dar "explicações" para tudo, sem ter o conhecimento de coisa alguma. E, toda vez que a realidade se recusava a se enquadrar em suas "explicações" limitadas, apelar para os "mistérios". Eu já comentei com o Daniel, a propósito da velha máxima "Deus escreve certo por linhas tortas" que "as linhas não são tortas: são geodésicas..." O grande problema é que não fazemos a menor idéia de qual geometria temos que usar...

Você, em seu primeiro comentário, apontou algo que eu devia ter deixado claro, uma vez que concordo inteiramente com sua colocação: o cientista tem o papel de buscar a verdade (eu pensei que isso estava implícito, quando disse "os fatos") e tirar a humanidade da ignorância, para que se possa ter uma "ética" realmente aplicável.

Um exemplo que eu acho particularmente aplicável para expor meu ponto de vista: no livro de Engels, "Dialética da Natureza", falta um capítulo final... Ele elabora toda a filosofia da "dialética materialista" até o ponto em que a humanidade, livre das amarras dos "idealismos", pode se desenvolver realmente. E omite especular sobre a meta desse desenvolvimento, porque era inteligente o suficiente para não entrar em um campo restrito aos "idealistas"...

Lucia Malla disse...

João, seu post está excelente! Um exercício filosófico-científico interessantíssimo, e eu me junto ao que o Mauro coloca em seu 1o comentário: cabe aos cientista mostrar que o conhecimento serve a todos. Cabe a ele os fatos, como vc claramente coloca.

Osame Kinouchi disse...

No entanto, "cabe ao cientista mostrar que o conhecimento serve a todos" é uma prescrição ética, não científica. João, depois comento melhor seu post...

João Carlos disse...

Osame, esta parte do comentário do Mauro é que já foi intensamente discutida aqui em temas anteriores. A menos que se crie uma nova "qualidade" de cientista + comunicador, eu não vejo como o cientista possa convencer o "homem comum" de que o conhecimento científico "serve a todos". (Mesmo porque nem todo conhecimento "serve a todos"...)

A linguagem da ciência não está ao alcance de todos (basta ver quanta asneira é propalada pela mídia sob o rótulo de "noticiário científico"). Nem mesmo daqueles "mais educados", porém não nos ramos das ciências: quem acompanha a Comunidade "Física" (e a "Astronomia") do Orkut, encontrou, nesta semana, um sujeito, formado em Ciências Contábeis (portanto, sem problemas com matemática) dizendo uma série de asneiras sobre o "Big Bang" capazes de envergonhar um analfabeto...

E eu me pergunto de onde um Procurador Geral da República tirou a idéia de que ele, com base em suas convicções pessoais, tem o direito de argüir uma Lei, aprovada pelo Congresso (com mandato passado pelo povo em eleições livres) e sancionada pelo Presidente (igualmente eleito)? Não foi da "ciência jurídica", com certeza...

Os cientistas são pessoas como quaisquer outras, com preconceitos dos quais nem desconfiam (ou, em casos mais tristes, se orgulham deles...) e tão capazes de errar como o mais ignorante dos analfabetos, quando se trata de juízo de valores. Por isso mesmo, o John Baez, concede 10 pontos em seu "Crackpot Index" por "afirmar que você freqüentou uma Faculdade, como se isso fosse uma prova de sanidade mental".

O papel do cientista é apresentar fatos, preto no branco, e deles extrair previsões comprováveis em ambiente controlado, sem qualquer juízo de valor. Senão, deixa de ser "ciência" e passa a ser "opinião", e "opiniões", abalizadas ou não, podem estar certas ou erradas, em diversos graus.

Osame Kinouchi disse...

É exatamente isso que estou tentando enfatizar, João. Os cientistas não são especialistas em Ética (disciplina filosófica), e assim somos todos leigos no assunto a menos que gastemos tempo e esforço para pensar nessas questões com profundidade. Como leigos em ética, os cientistas podem dar sua opinião (como qualquer leigo) mas precisam lembrar que aceitar opiniões éticas de cientistas a partir de sua autoridade científica é tão ingênuo quanto aceitar opiniões científicas a partir de filósofos da ética...

Osame Kinouchi disse...

João, eu gostaria agora de comentar seu post. Eu acho que talvez estejamos cometendo erros de hiper generalização, por exemplo, colocar uma série de fenômenos sob o mesmo rótulo de religião, sem adjetivos.
Deixa eu dar um exemplo: eu acho que a sua descrição da formação da religião parece ser razoável para descrever a emergência das religiões do tipo presentes na Suméria, Babilônia, talvez Egito, ou seja, religiões que talvez chamassemos de caráter mágico (ou seja, com forte ênfase em rituais manipulatórios, talismãs, prognósticos etc) - É claro que estou aqui pecando por simplificação, mas lembremos um exemplo: o estudo do céu (astronomia) tinha como principal motivador o prognóstico astrológico, não o conhecimento da natureza por si mesmo.

Devemos reconhecer também que exerciam grande papel de legitimação social de extratos superiores da sociedade: sacerdotes ou sacerdotizas de início, mais tarde nobreza e finalmente realeza. Nesse sentido, talvez a componente politico-ideologica fosse mais importante do que a cognitivo-científica: na medida que o faraó é tido como um ser divino ou filho de Deus, seu poder é sacramentado.
Da mesma forma, o aparecimento de religiões alternativas (como foi o Judaismo primitivo, que emerge no fogo cruzado das civilizações egípcia e mesopotâmica) parece ser primordialmente político: é uma religião de pastores, pequenos agricultures, talvez povos oprimidos pelas superpotências da época que criam um mito próprio, uma ideologia apropriada ao seu status social, onde Deus faz uma aliança com o povo, não com a nobreza ou reis. Não sei se isso foi uma anomalia (é possivel que visões semelhantes tenham aparecido em outros lugares mas sido sufocadas), mas acho que historicamente isso foi politicamente muito importante. Segundo Nietzsche, essa "religião da plebe" foi o que permitiu o aparecimento mais tarde do iluminismo, do anarquismo, do feminismo etc, pois se tornou antagônica à cosmovisão da sociedade de castas comum a todas as civilizações asiáticas e mesmo greco-romana. O Judaismo primitivo parece ser extremamente crítico da organização social estatal, desde o mito fundador da libertação de Israel do Egito à crítica permanente da realeza judaica feita pelos profetas. Ou seja, o que estou querendo comentar aqui é que as religiões, tanto na antiguidade como na atualidade, sempre tiveram essa preocupação política, seja de justificação do status quo seja de crítica ao mesmo. Me parece que a política, mais do que a atividade cognitiva (proto)científica, era e é a preocupação primordial de diversas religiões. E mesmo aquelas religiões intimistas, misticas, também têm um efeito político. Agora, precisamos cuidado em diferenciar religiões de religiões: podemos acusar os Quaker ou os Amish de serem anticientíficos (com a ressalva que Faraday era de uma seita Quaker), mas não de serem violentos, causadores de guerras etc. Afinal, um Amish nunca iria se alistar para a guerra do Iraque ou disputar verbas do Departamento de Estado, ou desenvolver cientificamente armas de destruição em massa.

João Carlos disse...

Perfeito, Osame! (Eu disse que tinha "atamancado"...) Há sempre um ponto onde o que era apenas uma série de "feriados" para "louvar as 'potências' da natureza humanizadas", passa a exercer um papel de legitimação do satus quo, essencialmente político e - vou além - "reacionário".

E o principal esteio dessa transformação é exatamente a "moral" (entendida em seu sentido literal: "costumes"). A "ética" fica um nível de abstração acima: é o processo de "racionalização" que procura justificar a "moral". A "ética" do Cristianismo jamais condenou a escravatura... a não ser quando lhe convinha (os Jesuítas e o Marquês de Pombal sairam na porrada porque o Marquês queria escravizar os índios, enquanto os Jesuítas queriam catequizá-los... Os negros eram mais resistentes à catequese...)

Seja como for, eu não vejo como extrair uma "ética" da ciência. A ciência apenas constata fatos. Você pode aplicar a Teoria dos Jogos às relações humanas e à interação da humanidade com o meio ambiente, e, a partir de uma análise matemática, decidir por algum modelo de comportamento, ao qual chamaríamos de "ético".

Mas eu receio que algumas constatações vão contrariar todos os preceitos que temos por "consagrados" nas "éticas" atuais. Por exemplo: existe gente demais na superfície da Terra e a redução dos números da população será mais do que bem vinda... (Eu não consigo ver um cientista que seja, disposto a fazer uma passeata portando um cartaz "VIVAM AS EPIDEMIAS!"...)

Osame Kinouchi disse...

Concordo, João. Maximizar o número de filhos fertéis pode ser a estratégia evolucionariamente adequada do ponto de vista do gene egoísta, mas disso não decorre uma ética. Eu não conheço nenhum animal, com excessão do ser humano, que faça controle de natalidade. Grupos religiosos podem dizer que estão afinados com tal ética naturalizada, "científica", na medida em que condenam o controle da natalidade, por exemplo, pois controle de natalidade seria não natural, não biológico. Acho que o sucesso reprodutivo dos mórmons e dos islâmicos se deve a isso, e é claro que, em termos de dinâmica de populações, eles herdarão a Terra. Mas essa maximização reprodutiva, em um mundo superpovoado, eu consideraria não ética, e esta consideração eu imagino que não pode ser derivada da Biologia (afinal, quem disse que "devemos" nos preocupar com a saúde dos ecossistemas, eu acho que nenhum animal ou vegetal se preocupa com isso. Acho que os grupos humanos com alta taxa reprodutiva diriam apenas: "sorry, não queremos destruir a Terra, mas apenas atingir sua carring capacity com a máxima percentagem possivel de nossos descendentes". Talvez devesse ser incluido no decálogo dos humanistas seculares o mandamento "crescei e multiplicai-vos", não é Daniel?

João Carlos disse...

Osame et al.

Descobri esta "pérola" no EurekAlert: "A Influência Através da Ignorância".

Um doce para quem me conseguir o "paper" inteiro!...

Daniel Doro Ferrante disse...

Osame,

Eu nao estou aqui nem pra representar nem pra defender ninguem.

Agora, essa coisa de "nascer, crescer, reproduzir e morrer"… nao eh tao "branco e preto" quanto parece, neh? E vc sabe disso… tah soh flamebaiting! :-) Foi por isso que eu nao me incomodei em nao ter tido tempo de responder antes. ;-)

O erro eh simples: "A capacidade energetica do planeta." Soh adianta produzirmos mais humanos se o Planeta consegue gerar meios que tornem viavel a vida desse humano. Se a humanidade crescer a ponto de ultrapassar a capacidade energetica do planeta… aih, o obvio vai acontecer: a quantidade de vida humana [energeticamente] viavel vai comecar a "diminuir".

Portanto, essa logica eh trivialmente furada. ;-)


[]'s.

Walner Mamede Júnior disse...

Muito interessante a questão "se as religiões nasceram da "ciência", porque não conseguem se atualizar junto com a ciência?"
Em poucas palavras, quando adentro tal discussão, costumo dizer que (o que para mim é um ponto nevrálgico da questão) a religião sobrevive graças a verdades absolutas, as quais servem de azimute às ações de adeptos e da prórpia instituição religiosa. A ciência caminha pela relativização dos fatos, o que lhe permite abrir espaços para reflexões e questionamentos na construção de suas verdades relativas, temporais e aproximadas. A própria noção científica de que suas proposições são apenas aproximadas em relação à realidade (esta muito mais complexa) cria ambiente propício ao surgimento de novas hipóteses a serem avaliadas e que preenchem os "vazios" (negros?! brancos?!) ainda por preencher. Não é que a Religião não se atualize. Só que ela o faz a "passos de formiga", pois suas atualizações precisam passar desapercebidas sob o risco de relativizarem sua verdade maior: Deus. Como relativizar Deus se sua eternidade e imutabilidade é que lhe conferem o poder de sempre ter existido, sem ter nascido, e de nunca morrer? A idéia de um deus surgiu justamente como resposta aos anseios do Homem pela existência de uma fonte criadora perfeita. E perfeição apenas é possível se a fonte criadora possui tudo o que se precisa possuir e, possuindo tudo o que se é necessário para a existência, não há motivos para mudanças, para movimento, pois este sinaliza imperfeição já que representa a busca constante por equilíbrio na tentativa de suprir uma falta, algo que, por definição, não deve existir na figura de um deus. A evolução da Ciência ocorre, exatamente, pela necessidade do homem movimentar-se, mas esse mesmo homem que busca afoitamente o movimento, deseja, também, um ponto imóvel no qual aportar, eventualmente. Relativizar Deus significaria assumir seu movimento (visível apenas a olhos atentos) e tirar dos pés cansados do Homem a terra firme que lhe dá pousada nos momentos de desespero, desconforto e insegurança, ainda que ilusória. Seria dizer ao Homem que ele é capaz de, por si só, buscar as respostas para suas dúvidas e as soluções para seus problemas sem delegar a terceiros a responsabilidade por isso. Tal atitude seria a assinatura do atestado de óbito de Deus (preenchido por Nietzsche, mas ainda não assinado) e da prórpia Igreja. A imobilidade da Religião quando comparada à Ciência é, mais que uma atitude política de sobrevivência institucional, o atendimento a uma necessidade afetivo-emocional inconteste do ser humano e, para o bem ou para o mal, fomentada dentro do que costumamos denominar "cultura ocidental".

Anônimo disse...

Ah! Visitem meu blog http://visaocientifica.blogspot.com

Abrs,
Walner

Walner Mamede Júnior disse...

João, realmente a linguagem científica não está ao alcance de todos, mas a ciência sim. Há uma discussão atual no meio científico, particularmente nos EUA onde está mais avançada, que afirma a necessidade de cientistas se dedicarem mais à divulgação/popularização das descobertas científicas em linguagem acessível e agradável ao leigo. Marcelo Gleiser, um brasileiro professor de física e astronomia do Dartmouth College,EUA (confira artigo pelo link "Papel social do cientista" em http://visaocientifica.blogspot.com), defende essa idéia e faz coro com outros cientistas pela adesão de colegas nessa missão. Infelizmente, no Brasil, isso não é tão valorizado quanto nos EUA, mas existe uma tendência a aumentar em decorrência da própria demanda popular por maior conhecimento. Contudo, devemos tomar cuidado, pois a massificação pode produzir charlatania ou equívocos em nome da fama, até porque alguns conceitos, para serem compreendidos pela maioria leiga, necessitam ser tão simplificados que correm o risco de sofrerem degenerações e reducionismos nocivos.
Quanto à necessidade de o cientista se abster de emitir opiniões baseadas em juizos de valor, ela é real, contudo, devemos ter claro que o cientista é ele próprio produto das ideologias, tabus, conceitos e preconceitos socio-culturais e suas descobertas e análises científicas estarão, invariavelmente, contaminadas por sua biografia. O que é indispensável é ter-se clara sua obrigação em abster-se de produzir interferências conscientes sobre sua produção, minimizando a contaminação dos dados e a tendenciosidade das conclusões. De qualquer forma, as interferências inconscientes estarão presentes e é, justamente, esse um dos fatores que dá à Ciência seu caráter aproximado e relativo e cria a necessidade de sermos rígidos com seus critérios de verdade (verdade sintática, verdade semântica e verdade pragmática).
Abrs
(VISITEM MEU BLOG HTTP://VISAOCIENTIFICA.BLOGSPOT.COM)

João Carlos disse...

@ Walner:

A parte sobre a sobrevivência da religião, a gente pode discutir em canal privado (só lembro os personagens centrais de "Contato" de Sagan).

Mas a questão não se resume em "abandonar o jargão científico". Existem, paralelamente, os problemas de analfabetismo e "analfabetismo matemático", por conta do ensino de "faz-de-conta" que está assolando o mundo inteiro e, particularmente, o Brasil.

A estrutura do ensino é tão obsoleta que não consegue competir com as mídias comerciais e imbecilizantes. Não é a ciência que tem que mudar (pelo menos, não só ela...). O Ensino tem!

Lorayne disse...

Qual o papel que a ciência e a religião, dois inequívocos pilares do conhecimento humano, podem ter sobre os processos de desenvolvimento da sociedade brasileira? Visite o site www.cienciaereligiao.org.br e participe da discussão em tordo do desenvolvimento do Brasil sob a ótica da ciência e da religião. www.cienciaereligiao.org.br